Meu conto
“A criança é o pai do homem” William Wordsworth
Faz alguns dias, eu estava de frente ao
espelho olhando para ele como de costume, mas dessa vez não via a imagem que costumava a
ver com frequência. Eu fui levado por aquele reflexo ao ano de 1995. Por essa ocasião, passei a contemplar no espelho um garoto de 12 anos e ele me contemplava de volta.
O menino estava deitado em sua cama, em um pequeno quarto, um puxadinho, como costumamos
a dizer. Ele morava com sua família, a mãe, o pai e a irmã. E no mesmo terreno,
que era do tio, convivia com seu tio e tia, suas duas primas e um primo.
Este garoto tinha inúmeros sonhos. Na verdade, ele culpou-me por não ter cumprido
nenhum deles.
Ele contava tantas coisas, estava tão
animado no início.
– Eu vou casar com 18
anos, vou ser veterinário. Com 25 anos já serei veterinário famoso, ah! Com 22
anos eu vou ser pai.
Ele fez uma pausa, olhou à minha volta
como se procurasse por outras pessoas. Ao me olhar de volta, aqueles olhos
enormes e assustados, fez que iria sair do espelho.
– O que cê fez? Cê estragou
tudo. Não casou, não teve filhos, não é veterinário...
Eu fiquei tão assustado e ao mesmo
tempo tive que concordar com ele. Ele tinha razão, afinal de contas, o que eu
fiz?
Ele continuou a narrar sua história, como que me cobrando por tantas coisas que não fiz, e eu me sentia
cada vez mais oprimido. Eu ficava recordando de coisas que eu havia esquecido, ou
mesmo me esforcei para esquecer.
– Eu quero ter uma
casa. Ah é, com piscina, igual àquela que meus primos e eu fizemos no chão do
terreiro e a casa igual a que cavamos no barranco.
Olhou de novo pra mim. Eu já nem sabia
o que estava fazendo ali diante daquele espelho-reflexo-menino. Ele perguntou:
–Você tem casa com piscina?
Eu disse que morava em um apartamento e
que tinha uma quadra inacabada lá, mas não tinha piscina. Aquela criança parecia frustrada. Começou a falar e sua voz deixava
escapar a decepção pelo futuro-homem de si que ele encarava. Dessa vez ele não
fez perguntas e eu já questionava minha sanidade.
Ele dizia:
– Num casô.
Num teve filhos, né nem veterinário. Num tem casa com piscina. O que cê fez
mesmo?
– Letras.
– Faz o que com isso?
– Sou professor de
português e inglês.
–Trabalha muito?
– Trabalho sim. – respondi já com um
misto de vergonha e nervoso com aquele eu-menino. Mas, o semblante dele mudou,
pareceu gostar da ideia de eu trabalhar muito.
– Ah, então você tem dinheiro. –
entendi o interesse dele. E continuou, já agora sorrindo:
– Comprou a coleção
do Power Ranges, que falei que ia comprar quando tivesse meu primeiro dinheiro?
Vi nele um sorriso disfarçado. Mas, sei que já ia decepcioná-lo mais uma
vez com a verdade.
Em tão pouco tempo, esse garoto teve a
capacidade de deixar-me tão frustrado. Eu não tinha feito nada que prometi a
mim mesmo e ele me lembrava de cada detalhe. Isso me matava por dentro.
Eu, de cabeça baixa, fui vencido por
mim mesmo numa versão mirim, e por fim, relutante, respondi: – Não, não comprei, me desculpe.
Houve uma pausa, eu ouvi um barulho e
ele também, então, eu levantei minha cabeça, desenterrando-a daquele charco de
vergonha e decepção. Dei conta de que era minha gata miando e tentando abrir a
porta do quarto. Ela faz isso com frequência. O menino-garoto-do-espelho perguntou-me o que
era. Ele ficou surpreso ao saber que ele-eu, tinha duas lindas gatas. Ele sorriu.
Aquele sorriso mudou algo em mim e eu
compreendi que agradei aquele menino com essa novidade. Comecei, então, a
contar para ele o que eu fiz. Contei muitas coisas. Detalhes de como vivi, por
onde andei e pessoas que conheci. Mencionei as perdas que enfrentei e
conquistas que alcancei. E o garotinho no reflexo me olhava atentamente. Já com
minha gata no colo, olhando uma vez ou outra para o menino, ainda com receio de
que se decepcionasse novamente, eu fui encerrando minha fala e olhando para a
gata...
...eu tenho 34 anos, não me casei, não
tive filhos, mas tenho a melhor companhia com a qual compartilho a vida, tenho
amigos e familiares sinceros que a vida me ajudou a manter e a conquistar.
Pessoas que me mostram o sentido de continuar a viver e me motivaram a seguir
em frente. Moro em um apartamento, local no qual vivi várias experiências e aprendi
muitas lições. Não fiz veterinária, fiz letras e com isso ajudo a formar outros meninos
e meninas da sua idade para conquistarem os sonhos da vida deles. Não comprei os
Power-Ranges, mas toda vez que vou a uma pizzaria eu como tantas quanto desejo,
como se o mundo fosse acabar - disse eu com uma risada sem graça.
Então, sem saber mais o que falar, eu desci a gata do colo.
Eu não sabia se a minha criança iria
aprovar tudo isso. Sentia que ele me olhava fixo. E foi ai que decidi olhar de volta para o
espelho. Para meu espanto, ele já não estava mais lá. O que eu via era um homem de 34 anos que me
olhou de volta e encerrou assim:
– Obrigado por ter
sobrevivido e enfrentado tudo, obrigado por nos trazer até aqui.
Créditos
Vídeo: The mirror - Alexandre Desplat - O Esplelho
Canal Youtube: Setubas Chanel
Texto: Douglas Adrian
Douglas, que texto lindo! Fiquei emocionada com a sua sensibilidade. O seu EU me tocou demais. Parabéns! Heloísa
ResponderExcluirObrigado, Heloísa, pelo seu comentário. Pena estar vendo-o somente agora. Estive ausente do blog. Agora retornando com muitas novidades.
ExcluirFoi emocionante ouvir você contar o seu conto, com todos os detalhes, com todas as emoções. Perceber e ver o detalhe de cada fato, de cada lembrança passando pelos seu olhos, foi lindo. Estava como espectadora, mas posso dizer, que honra poder fazer parte desse seu mundo tão lindo. Te amo amigo, parabéns mais uma vez, que seja a primeira de muitas vitórias que eu venha a te aplaudir.
ResponderExcluirEi, meu bem, que bom ler suas palavras. Volte sempre. Eu estou de volta com o blog. Espero você aqui mais vezes.
ExcluirMal de todo professor de português... se arriscar pelo mundo da escrita!!! Isso vicia... mas é maravilhoso!! Parabéns!!!
ResponderExcluirBoa tarde,
ResponderExcluirE ai cara, tudo bem?
Obrigado pelas palavras em meu blog!
Espero que volte a postar aqui novamente
Abraços
www.rimasdopreto.com
Ei, meu querido. Estou de volta com o blog agora. Obrigado pelo seu comentário e visita. Irei voltar sim em seus textos. Abraços.
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